A cidade de Milão, no norte da Itália, parou de fazer os registros das certidões de nascimento estrangeiras de crianças nascidas de casais homossexuais na Itália. Isso significa, na prática, que essas crianças não terão mais o direito de ser registradas no cartório como filhas nas famílias em que vivem.

A suspensão ocorreu no mês de março, quando a prefeitura de Milão recebeu ordens do Ministério do Interior para interromper os registros, baseando-se na lei 40 de 2004, que determina que apenas casais formados por pessoas de sexos diferentes, ou seja, heterossexuais, têm direito à procriação medicamente assistida (fertilização in vitro). Essa lei também proíbe a barriga de aluguel.

Conflito social na Itália impacta direito no registro de filhos de casais homoafetivos

A Itália vem enfrentando um conflito no aspecto social desde setembro de 2022, quando Giorgia Meloni, que lidera o partido Irmãos da Itália, de extrema-direita, foi eleita como primeira-ministra, defensora da família tradicional e dos direitos cristãos, além de fazer campanha contra o que ela chama de “ideologia de gênero” e “lobby LGBT”.

Meses antes de chegar ao poder, Meloni propôs uma lei que transformaria a barriga de aluguel em um crime universal. E isso ainda está na agenda do seu partido.

A nova proibição imposta pelo atual governo, gerou um crescente sentimento de frustração e indignação na comunidade LGBTQIA+, levantando novamente o debate em torno da causa e levando multidões às ruas para protestar contra a abordagem hostil do governo sobre os direitos dos homossexuais.

É o amor que cria uma família. Fonte: Getty Image via Sky tg24

Direitos de adoção: entenda o retrocesso que a Itália enfrenta

As uniões civis entre pessoas do mesmo sexo foram legalizadas na Itália em 2016, sob um governo de centro-esquerda, mas a oposição da Igreja Católica impediu que os casais homossexuais pudessem adotar crianças.

No entanto, as decisões têm sido tomadas caso a caso pelos tribunais, à medida que os pais entram com ações legais.

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Milão no centro do conflito

Até recentemente era permitido registrar em Milão crianças nascidas no exterior como filhas de casais do mesmo sexo, por procriação medicamente assistida ou através de barriga de aluguel.

O prefeito de Milão, Giuseppe Sala, de centro-esquerda, assumiu uma postura progressista permitindo que os filhos de pais do mesmo sexo fossem reconhecidos na ausência de uma legislação nacional clara.

No dia 14 de março, no entanto, o que era considerado um avanço – além de uma grande vitória pela igualdade – para a comunidade LGBTQIA+, sofreu um revés.

Sala foi comunicado pelo governo italiano que os registros de filhos de pais homossexuais não poderiam mais ser feitos e se viu obrigado a interromper a prática.

Parlamento Europeu condena decisão do governo italiano

A decisão do governo ultraconservador gerou uma enorme preocupação entre os membros do Parlamento Europeu, que condenou a decisão, temendo que a medida gere uma discriminação não só contra os casais homossexuais mas, sobretudo, contra seus filhos.

Os eurodeputados consideram a decisão do governo italiano uma violação direta dos direitos das crianças e pedem sua “imediata recisão”.

A iniciativa do governo italiano gerou manifestações

No último dia 18 de março, milhares de pessoas se reuniram em Milão para protestar contra as restrições do governo italiano que afetam diretamente os casais homossexuais e seus filhos.

Explique ao meu filho que não sou a mãe dele

Dizia uma placa erguida em meio a um mar de bandeiras de arco-íris que enchiam uma das praças centrais da cidade.

Manifestação em Milão em 18 de março de 2023. Fonte: Sky Tg24

Alessandro Zan, deputado do Partido Democrático e símbolo da luta pela lei contra a homotransfobia, alegou nas suas redes sociais que “é um verdadeiro ataque da direita e do governo de Meloni contra as famílias arco-íris, mais um novo episódio em sua cruzada contra a comunidade LGBTQIA+”.

Alessandro ainda explicou didaticamente em seu vídeo, que repercutiu em milhares de curtidas e compartilhamentos no Instagram: “por um lado, o Senado está prestes a dizer não à União Europeia, que exige que todos os estados-membros da União reconheçam os mesmos direitos para todas as famílias. Com este ‘não’, a direita nos arrastará para países como a Hungria, a Bulgária e a Polônia e não para países como Espanha, França e todos os países mais avançados da União Europeia”.

Por outro lado, com essa proibição, eles tiram o único resquício de direito para todas essas famílias e seus filhos.

O deputado considera a iniciativa uma verdadeira fúria da direita contra os direitos das famílias homossexuais: “estão a implicar com a vida, a dignidade e os direitos das famílias e crianças cuja própria existência querem negar. Por fim, ele lança uma pergunta, direcionada à primeira-ministra:

“por que Meloni, mulher, mãe, cristã, é tão cruel em negar os direitos de algumas famílias só porque são diferentes da sua?”

Consequências: crianças podem ficar num limbo legal

Famílias homoafetivas enfrentam uma série de desafios na Itália.

Crianças cujo direito é negado de ter ambos os pais reconhecidos em sua certidão de nascimento podem ser deixadas em um limbo legal.

Angelo Schillaci, professor de Direito da Universidade Sapienza, em Roma, afirma que “as crianças acabam tendo acesso limitado a serviços e benefícios essenciais, como assistência médica, herança e pensão alimentícia” e acrescenta:

“Atualmente, apenas um dos pais é reconhecido pela lei, o outro é um fantasma. Na vida real, pais e filhos brincam juntos, cozinham juntos, praticam esportes e saem de férias juntos. Mas, no papel, eles estão separados; o Estado não os vê. É uma situação paradoxal”.

No pior dos cenários, se o pai ou a mãe legalmente reconhecido morrer, isso significa que o filho ou os filhos do casal poderia ficar sob a tutela do Estado e eventualmente enfrentar a perspectiva de ficarem órfãos.

Casal se sente desestimulado a adotar filhos vivendo em um país ultraconservador

Felipe Tavolaro (cantor, ator e professor acadêmico, 37 anos) e David Rios (artista plástico e design de interiores, 34), juntos há sete anos e casados há cinco, contam que desde que a Itália começou a aceitar a união estável entre casais homossexuais, a ideia de poder escolher viver no país legalmente como casal, com todos os direitos de imigração, os inspirou a procurar novos horizontes e realizar o sonho de viver como uma família de verdade perante a sociedade, um sonho que era impensável há dez anos.

Para Felipe e David, ampliar a família, atualmente composta pelo casal e dois cachorrinhos (Castor e Peppe) é um desejo latente, porém ambos são realistas.

“Temos a consciência que o sonho de ter uma criança gerada por nós não é simples. Nos EUA existem empresas especializadas em gerar crianças de barriga de aluguel, porém os custos são altíssimos e muito fora da nossa realidade. Então, estamos convencidos de que a adoção é o melhor caminho. Sabemos o potencial que temos como pais de educar um filho, e seria incrível poder dar esta oportunidade a uma criança órfã. Seria a realização de um sonho”, diz Felipe.

felipe e david
Felipe e David com os cachorros Castor e Peppe, em Turim, Itália. Foto: Roberta Simoni

Mas, desde que Meloni foi eleita, eles temem pelos seus direitos. David ressalta que ainda está em processo de reconhecimento de cidadania por matrimônio e ambos estão receosos que o governo de direita queira barrar também este direito já conquistado.

“A sensação é a de que voltamos à Idade Média, onde nossos direitos pessoais são tolhidos por uma parte muito pequena e poderosa do sistema. Mesmo sendo obrigados a cumprir com todas as burocracias, principalmente fiscais, de um cidadão com plenos direitos.”

O casal, que vive em Turim, no norte da Itália, há três anos, alega que socialmente o país pode ser um lugar hostil com quem pensa diferente.

“Mesmo amando morar aqui e conseguindo construir muitas coisas boas, estamos elaborando a ideia de ir para um país onde os direitos sejam mais evoluídos, no caso, a Espanha. Chegamos aqui em plena pandemia e só agora nos sentimos mais estáveis financeira e culturalmente. Uma nova mudança não seria muito fácil, por isso, se pudéssemos desenvolver nossa família aqui, seguramente investiríamos em criar raízes mais fortes na Itália.”

Desdobramentos: novas medidas estão sendo tomadas

Essa proibição articulada pela direita ultraconservadora de Meloni não muda automaticamente seu destino, mas indica claramente a linha que a maioria no governo da Itália deseja.

Giuseppe Sala, viajou a Bruxelas, sede do Parlamento Europeu, para angariar apoio, na intenção de formar uma aliança com os partidos de oposição para lutar pelos direitos das famílias homoafetivas.

“É um óbvio retrocesso do ponto de vista político e social, e me coloco no lugar daqueles pais que pensaram que poderiam contar com essa possibilidade em Milão”, disse o prefeito, em um podcast, prometendo lutar contra a mudança.

Ele também se encontrou com as famílias homoafetivas e seus representantes e explicou toda a dificuldade que enfrenta no atual cenário. No entanto, Sala também confirmou que esta será sua “batalha política” com o governo.

A secretária e líder do Partido Democrata Elena Schein, que foi ovacionada durante a manifestação que ocorreu em Milão, declarou que pretende propor novamente a questão dos direitos no Parlamento. Fará isso com um projeto de lei assinado pelo deputado Alessandro Zan. A esperança é que a frente de oposição possa se consolidar e o atual cenário mude.

A batalha que a Itália enfrenta se deve justamente por não haver uma legislação clara e específica no país que proteja igualmente todas as famílias, dessa forma, o atual governo encontra brechas para tentar tirar os direitos já adquiridos pelas famílias homoafetivas.