Migrar é uma escolha. A gente planeja, pensa em cada detalhe, passa anos sonhando com essa mudança, mas, na prática, quando o sonho se torna realidade, planejamento nenhum é capaz de prever como vamos nos sentir diante dos desafios ao longo dessa jornada.
Ao se deparar com uma nova realidade, a percepção do nosso entorno também muda e se acomoda. E, ainda que cada experiência seja única e intransferível, sempre vem acompanhada de uma sensação muito comum compartilhada por todo imigrante: a de ser um eterno estrangeiro.
Somos como “moléculas imigrantes”
Um fenômeno interessante e curioso que ocorre com os indivíduos que saem da sua terra natal para viver em uma nova terra, é aquilo que eu gosto de chamar de “desfragmentação do ser intacto”.
Muito embora não exista nenhum fundamento científico nessa teoria, peço licença rapidinho aqui à ciência para explicar minha linha de raciocínio e construir essa analogia:
É fácil observar que todo indivíduo que migra de um país para outro passa por um processo parecido com a quebra de uma molécula — e, embora na química esse seja um processo quase sempre reversível, a “molécula imigrante” jamais voltará a ser uma inteira.
Desde que eu me mudei do Brasil, essa é a imagem que sempre me vem à mente quando eu quero ilustrar esse sentimento: uma molécula que se partiu deixando pra trás muitas partes do seu coração atômico.
Sem jamais me desprender das minhas raízes, ganhei asas e parti com pedaços do meu coração em perfeito funcionamento, capaz de construir novas relações e escrever outras histórias.
Eu não sou daqui
Só eu sei quantas partículas minhas andei espalhando por aí nos últimos anos, me mudando de um canto pro outro. Mas quem me vê de fora, enxerga um ser intacto.
A maior parte do tempo eu também me vejo assim, eu também esqueço que não tô mais inteira, que nunca mais estarei. A parte desfragmentada fica ali, perdida nos vestígios do cotidiano, mas todos os dias ela me manda lembretes de que eu não sou daqui.
Às vezes, quando eu tô quase me sentindo em casa, alguém me pergunta: “desculpa, mas de onde você é?” — e eu nem preciso estar falando português, é o acento que me entrega.
O idioma também é uma barreira
Retomei as aulas de italiano com o pretexto de ter uma base para poder entrar no mestrado, mas a verdade é que voltei a estudar, sobretudo, para melhorar meu vocabulário, para conseguir argumentar e lutar pelos meus direitos.
É muito angustiante quando você se vê em situações onde precisa discutir, mas a limitação da língua coloca seu poder de argumentação muito aquém do necessário.
Foi assim dia desses numa loja tentando trocar um produto que veio com defeito — e outro dia num impasse para fazer uma pequena obra no banheiro do apartamento que eu alugo.
No fim, tudo se resolve. Mas a energia que se gasta com essas questões cotidianas é surreal.
Você compra uma calça nova e precisa fazer a bainha, mas aí lembra que não tem mais a Dona Terezinha, costureira de mão cheia, vizinha de uma vida inteira da sua mãe. Quando o carro quebra, você não tem mais o seu mecânico de confiança. E se você tiver um número pra quem ligar se passar mal, já pode se considerar uma pessoa de sorte.
Mas, calma… tudo se ajeita
Com o tempo, você encontra outra costureira, arruma um mecânico pra chamar de seu. E, com mais um cadim de tempo, constrói relações de confiança para poder ligar a hora que precisar. Tudo se ajeita. Ou quase tudo.
A festa dos seus sobrinhos você só vai assistir por facetime, o aniversário da sua mãe não vai ter você nas fotografias, o domingo não vai ter uma passadinha no churrasco do seu primo. Esses e muitos outros são os seus fragmentos que ficaram no seu país, te enviando lembretes de que você não está inteiro, ainda que aparente.
E quando você vai pra “casa” visitar os seus parentes, não espere se sentir muito diferente disso, viu?
Estou morando na Itália há dois anos e ainda não tive a oportunidade de visitar o Brasil desde então. Mas todos os meus amigos que moram tanto aqui quanto em outros países relatam a mesma sensação:
sempre que eles estiveram no Brasil para visitar a família e os amigos, embora tenham se sentido muito felizes por matar as saudades de todos, comer as comidas que adoram (isso também faz falta demais, viu?), poder falar a nossa língua nativa e etc., o estranhamento em muitos aspectos é enorme e indisfarçável.
Você já não sabe se tudo está diferente, se foi você quem mudou ou se a sua forma de enxergar o mundo se ampliou. O fato é que nada mais é como antes.
Ou seja, você não se sente mais nem lá, nem cá. Uma parte sua tá bem inserida nesse novo contexto, a outra pertence e sempre vai pertencer a outra cultura.
Também escrevi sobre: viver fora é como um casamento.
A eterna encruzilhada entre duas realidades
A verdade é que a gente vive uma eterna encruzilhada entre duas realidades, duas identidades que se entrelaçam e se complementam.
Continuamos celebrando as tradições do nosso país enquanto apreciamos as peculiaridades da nossa terra adotiva. Acho que a grande arte é dominar o delicado equilíbrio entre se adaptar e manter as nossas raízes intactas, aceitando que nunca mais seremos completamente inteiros.
Essa experiência também traz desafios únicos: lutar para se encaixar, enfrentar os preconceitos, a solidão e a busca constante por uma sensação de pertencimento. E esses são só alguns dos nossos obstáculos.
A verdade é que uma vez que migramos, eventualmente podemos nos sentir deslocados em ambos os mundos, mas dificilmente nos sentiremos totalmente em casa em algum deles.
Dias de luta, dias de glória
Viver acompanhada da sensação de ser uma eterna imigrante não significa que a minha vida seja uma luta constante. Eu prefiro encarar como uma jornada de autodescoberta contínua, um convite para explorar o mundo — tanto interna quanto externamente —, uma oportunidade para abraçar a diversidade e a riqueza de diferentes culturas.
E, embora seja uma estrada sinuosa e desafiadora (e muitas vezes eu me sinta exausta de conduzir por ela), é também através desse caminho – que me oferece uma perspectiva única sobre a vida – que eu sinto a minha alma se nutrindo e florescendo.
Uma das maiores recompensas de seguir nessa estrada foi ter desenvolvido incríveis habilidades de resiliência e de abraçar o novo e o diverso sem nunca perder o amor pelas minhas raízes.
O que fazer quando perdemos parte de nós? Leia mais na coluna sobre a invisibilidade do imigrante.
Aprender a ser lar
O que eu tô finalmente começando a entender é que, enquanto imigrantes, nós nunca chegamos a nos sentir parte integral de lugar nenhum, mas começamos a caminhar pra um lugar mais abstrato.
Na impossibilidade de se sentir totalmente em casa em nenhum lugar, encontramos nossa própria definição de lar. E ela reside na constante exploração da riqueza do mundo e na aceitação do eterno equilíbrio entre pertencer a todos os lugares e a lugar nenhum.
Aos poucos, a gente vai aprendendo a conviver com o sentimento de falta e se adaptando a ideia de viver faltando partículas porque entende que isso também nos deixa mais livres, leves e soltos.
Às vezes a gente se sente estrangeiro sem nunca ter saído do próprio bairro. Não tem a ver exclusivamente com geografia. Comigo foi assim, eu sempre me senti um pouco estrangeira, mesmo antes de migrar. Quem sabe a migração, para muitos de nós, possa ser um chamado para essa compreensão.
Ser um eterno imigrante é um jeito de aprender a morar em si, a ser seu próprio lar.