Oficialmente, Barcelona é uma cidade espanhola, sendo considerada, inclusive, como a segunda maior do país (depois da capital, Madri). Quando eu fui tirar meu visto para estudar na cidade, por exemplo, eu recorri a um consulado espanhol. Mas nem todo mundo considera que morar em Barcelona é morar na Espanha.

Há quem diga até que a cidade é a capital da República da Catalunha. Quer saber que diferença isso faz para um estrangeiro e quais são os diferenciais culturais da região? Confira!

As comunidades autônomas da Espanha

Para entender porque existe a dúvida se morar em Barcelona é morar na Espanha, é preciso falar primeiro sobre as comunidades autônomas (CAs). O país é formado por 17 dessas comunidades e a Catalunha é uma delas.

Foi a Constituição espanhola de 1978 que estabeleceu essa organização, ao reconhecer que o Estado Espanhol reúne distintas identidades socioculturais. Com isso, cada comunidade ganhou autonomia executiva, administrativa e legislativa. É quase como se fosse uma federação (quase porque o poder judiciário é centralizado).

Na prática, isso significa que cada CA tem suas próprias instituições administrativas e suas próprias regras. Um bom exemplo disso são as touradas, que foram proibidas pelo Parlamento Catalão em 2010. A decisão foi posteriormente anulada pelo Tribunal Constitucional Espanhol. Mas desde então não houve mais eventos desse tipo na região.

Comunidades autônomas de Madri
Comunidades autónomas de España (Rodriguillo, edited by Nnemo, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons).

Para estrangeiros, como eu, outra diferença prática está no sistema de saúde pública, que é próprio de cada CA. Quando eu morava em Barcelona, eu fiz minha carteirinha e pude usufruir dos serviços públicos de saúde locais.

Quando cheguei a Valência, veio a surpresa. Minha carteirinha não vale aqui e, pelas regras da Comunidade Valenciana, pode ser que eu não tenha direito à saúde pública, mesmo sendo residente oficial. No momento, eu sigo tentando resolver essa situação.

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Barcelona, a capital da Catalunha

Assim como São Paulo e Rio de Janeiro, Barcelona pode referir-se tanto à cidade em si quanto à província (correspondente a um estado). Além desta, a comunidade autônoma da Catalunha é formada também pelas províncias de Girona, Lérida e Tarragona. Barcelona (a cidade) é a capital de toda essa região.

Alguns dados interessantes:

  • A Catalunha é a 2ª CA em população, com 7.596.131 habitantes (2018), o que corresponde a 16,22% da população espanhola;
  • É também a 2ª maior responsável pelo PIB espanhol (19% contra 19,2% da Comunidade de Madri);
  • É a 4ª CA com maior PIB per capita (por pessoa);
  • E a 6ª em superfície, com 32.107 km2 (6,3% do território espanhol).

Ou seja, apesar de tratar-se de um território relativamente pequeno, a população local é significativa e a economia catalã é bastante forte. Partem daí algumas das discordâncias de que morar em Barcelona é morar na Espanha. Eu conto mais sobre isso a seguir.

A questão da independência

Barcelona, domingo, 14h. Enquanto tomo um café, eu ligo a televisão no canal de notícias da TVE (a TV pública espanhola) e o que está passando são as notícias do dia em catalão.

Valência, domingo, 14h. Ligo a TV no mesmo canal e o que está passando não são as notícias do dia em valenciano, mas sim o programa do rei. Me surpreendo ao lembrar que a Espanha segue sendo uma monarquia (parlamentar, mas ainda assim, uma monarquia).

Contudo, existem muitos catalães que afirmam com toda confiança que, desde 2017, eles vivem em uma república, na República da Catalunha.

Valência ou Barcelona: onde é melhor viver? Leia a minha opinião.

Duas Catalunhas

O documentário “Duas Catalunhas” (Netflix, 2018) explica bem sobre o referendo de independência dessa região que ocorreu em 2017. A produção permite conhecer pontos de vista diversos, incluindo comentários de pessoas favoráveis e contrárias à independência.

Um catalão bem conhecido que é a favor da emancipação da Catalunha é o futebolista Pep Guardiola. Enquanto isso, a cineasta Isabel Coixet (diretora de A Vida Secreta das Palavras, entre outros) é uma das que se contrapõem à ideia. Se perguntarmos a cada um deles se morar em Barcelona é morar na Espanha, certamente, teremos respostas distintas.

Palácio do governo catalão
Palácio do governo da Catalunha com a bandeira catalã e faixa de protesto contra os presos políticos. Foto: Tátylla Mendes

Mas as opiniões sobre o tema também costumam variar para além do sim ou não. Há catalães que já se consideram independentes e outros que seguem lutando pela independência; há os que não querem a independência, mas são a favor de um plebiscito popular ou de ter mais autonomia; há os que não querem a independência, mas também não querem mais ter um rei; e há muitos que não querem saber nada do assunto.

Razões econômicas e culturais

Como estrangeira que sou e vivendo agora fora da Catalunha, eu acho que não cabe a mim opinar sobre a independência da região. Até porque eu não sou parte da cultura catalã e já não tenho que lidar com a economia local. E esses são os principais argumentos dos que são a favor da independência.

A questão econômica tem a ver com o déficit da balança fiscal da Catalunha. Ou seja, com o fato da região pagar muitos impostos e não receber uma contrapartida equivalente do Estado Espanhol. Como demonstração prática disso, eu posso dizer que sim, morar em Barcelona é caro, principalmente, quando o tema é o aluguel.

Por outro lado, muitos nacionalistas e independentistas defendem que a cultura catalã é diferente da cultura espanhola. O idioma catalão é um dos principais pontos dessa discussão. E na verdade esse é um dos fatores que mais fazem diferença para nós, estrangeiros.

Conheça 10 sinais que você mora (ou já morou) em Barcelona.

Na Catalunha se fala catalão

No filme “Albergue Espanhol”, um grupo de franceses vai estudar em Barcelona. Chegam à universidade e a aula é em catalão. Como são mais de 15 estudantes estrangeiros, eles pedem que o professor fale em castelhano. E o professor responde: “Estamos na Catalunha e aqui o catalão é um idioma oficial”.

É verdade. Na Catalunha, o catalão é tão oficial quanto o castelhano. Assim como há outros idiomas que são cooficiais em suas respectivas comunidades autônomas.

Por isso, antes de ir fazer meu mestrado em Barcelona, eu fiz questão de ter garantias de que as aulas do meu curso seriam ministradas em castelhano. E foram. Mesmo assim, eu vi a cena do filme ser repetida várias vezes na vida real durante o tempo que morei na cidade.

“Você está na Catalunha e aqui se fala catalão”.
“Tu ets a Catalunya i aquí es parla català”.

Castelhano x Catalão

É importante não generalizar. Nem todos os catalães são assim tão inflexíveis. Alguns, inclusive, preferem falar em castelhano ou variam de um idioma ao outro de acordo com a pessoa ou a situação. E as comunicações oficiais costumam ser feitas sempre nos dois idiomas locais.

No metrô de Barcelona, por exemplo, os avisos são dados em catalão, depois em castelhano e, em seguida, também em inglês.

Só que, como o idioma é um elemento que promove uma forte identificação cultural, muitos catalães defendem o seu de forma intensa. E em muitos casos, ao associá-lo com ideologias como o nacionalismo, o catalanismo e o independentismo, defendem que sua utilização seja superior a do castelhano.

Catalão para estrangeiros

Para nós, estrangeiros, acho que conviver com o idioma catalão é uma das principais razões para duvidarmos se morar em Barcelona é morar na Espanha.

Ainda assim, pela minha experiência, eu diria que não é indispensável saber catalão para morar na cidade. Mas “si tu parles una mica” (se você fala um pouco) pode ser mais fácil para se integrar. E também para encontrar um emprego.

A boa notícia é que a Prefeitura de Barcelona oferece cursos online e presenciais gratuitos para estrangeiros que querem aprender o idioma.

Entenda como a visão de mundo de expatriados pode mudar na Europa.

Festas e tradições da Catalunha

Dos “castellers” aos “caganers”. Da Diada ao Dia da flor e do livro. Muitas das tradições típicas da Catalunha também podem fazer a gente se perguntar se morar em Barcelona é morar na Espanha.

Veja só:

Tradições natalinas

Enquanto nós, brasileiros, costumamos utilizar vários xingamentos relacionados ao contexto sexual, os espanhóis costumam ser mais escatológicos. Se me permitem ser mais direta, eles se cagam em tudo.

“Me cago en la mar”, “me cago en la leche” e “me cago en todo” são expressões bastante comuns em toda a Espanha. Neste caso, os catalães não fogem à regra. Na verdade, são ainda mais intensos.

No Natal, por exemplo, eles costumam acrescentar ao presépio uma figurinha fazendo suas necessidades, o “caganer”. Segundo eles, defecar é tão comum que, mesmo quando Jesus nasceu, certamente, havia alguém fazendo isso.

E para as crianças, um dos personagens principais da data é o “caga tió”, um tronco de madeira no qual eles batem enquanto cantam, pedindo-lhe para cagar torrones.

Caga tio
Caga tió: uma das tradições catalanas que faz a gente se perguntar se morar em Barcelona é morar na Espanha. Foto: Tátylla Mendes

Feriados típicos

Engana-se quem pensa que essa visão tão realista das necessidades humanas básicas faz com que os catalães sejam menos religiosos. Na coluna Mitos sobre a Espanha, eu já comentei um pouco sobre o tema e falei sobre a Segunda Páscoa (comemorada apenas na Catalunha) e a tradição do ovo que baila.

Mas nem todos os feriados de caráter religioso são celebrados necessariamente com tradições religiosas. O Dia de São Jorge, por exemplo, também é chamado de Dia da flor e do livro. Porque esses são os presentes que costumam ser trocados na data por casais, amigos e familiares.

No Dia de São João, além das tradicionais fogueiras, é comum celebrar com todo tipo de pirotecnia, desde estalinhos até rojões e fogos de artifício.

Além disso, é preciso comentar também sobre a Diada, o Dia Nacional da Catalunha. Neste caso, não se trata de um feriado religioso, mas sim com uma forte carga política. Na data, costumam ser realizadas manifestações populares pró-independência reunindo milhares de pessoas.

Os castells e as sardanas

“Castell” é a palavra catalã para castelo. Mas não estamos falando, neste caso, de uma construção arquitetônica e, sim, de uma torre humana de vários andares. Uns montados em pé sobre os ombros dos outros. Os participantes dessa brincadeira acrobática são os chamados “castellers”.

Digo brincadeira porque me lembra os números de circo e é uma tradição muito relacionada às festas populares. Mas vale dizer que – assim como os artistas de circo – os “castellers” precisam de bom preparo físico e treinamento frequente para realizar suas façanhas.

Por outro lado, há tradições catalãs que são bem menos chamativas. É o caso da sardana, uma dança popular da região. Se você tem como parâmetro o flamenco, por exemplo, uma sardana pode parecer bem mais monótona. E aí, nos perguntamos de novo: morar em Barcelona é morar na Espanha?

Comidas típicas

“Quer algo mais além do café?”
“Um pão com tomate, por favor”.

A cara com que a garçonete de Córdoba me olhou depois que eu disse isso foi como se eu tivesse pedido feijão com leite condensado. Depois, ela me trouxe um pão com queijo(?) e um sachê de molho de tomate à parte. E como o queijo estava derretido, era impossível separá-lo do pão para colocar o molho.

Erro meu, claro. Quem me mandou pedir uma comida típica da Catalunha em plena Andaluzia? Pode parecer algo simples. Mas em Barcelona o “pão com tomate” tem uma única interpretação.

É um pão em que se passa um pedaço de alho e depois se coloca azeite e um pouco de molho de tomate natural. Mas basta sair da Catalunha para uma receita simples como essa mudar de significado.

Pão com tomate na Catalunha
Pão com tomate acompanhando a tortilha de batata: uma combinação típica da Catalunha. Foto: Tátylla Mendes

Calçots

Entre novembro e abril, temos outra vez a dúvida se morar em Barcelona é morar na Espanha, já que, na Catalunha, é época de “calçots”.

Não, não tem nada a ver com calças ou calções, mas sim com o fato de calçar a terra na hora de plantar a cebola. Sim, o calçot nada mais é do que uma cebola. Só que é uma cebola cultivada de um modo especial, para impedir o crescimento do bulbo e torná-lo macio.

Essa forma específica de cultivo foi desenvolvida em Tarragona. E é algo tão típico da Catalunha que eles chegam até a fazer festas específicas para comer “calçots”, as “calçotadas”.

Artistas catalães famosos

Passeando por Barcelona, em uns 15 minutos é possível ir da Sagrada Família até a Casa Batlló. Daí até a Casa Vicens são uns 10 minutos mais. E em outros 15 minutos já estamos no Parque Güell. Se quiser dar uma esticadinha, a Cripta Gaudí fica a aproximadamente 1h daí.

A disseminação de obras de Antoni Gaudí pela capital catalã é outro dos motivos que nos levam a questionar se morar em Barcelona é morar na Espanha.

É claro que em outras cidades do país também é possível encontrar belos exemplares arquitetônicos construídos por outros grandes nomes espanhóis. É o caso, por exemplo, da Cidade das Artes e das Ciências, aqui em Valência – obra de Santiago Calatrava. Mas (na minha opinião) não é a mesma coisa.

Casa Vicens de Gaudí
A Casa Vicens, uma das primeiras obras de destaque de Antoni Gaudí. Foto: Tátylla Mendes

Pintores catalães x pintores espanhóis

Salvador Dalí e Joan Miró também eram catalães. A Fundação Miró, em Barcelona, e o Teatro-Museu Dalí, em Figueres (Girona), guardam a memória desses grandes artistas em suas respectivas cidades natais.

Por outro lado, Goya (proveniente de Zaragoza, comunidade de Aragón) e Velázquez (de Sevilha, Andaluzia) são exemplos de outros irrefutáveis nomes da arte espanhola.

Ainda assim, se fosse para comparar (limitando-me aos exemplos dados, para simplificar o cotejo), eu diria que os artistas catalães me parecem mais ousados, extravagantes ou expressivos.

Imagino uma chuva de críticas sobre minha pessoa agora. Um professor de Arte me lembra dos séculos de diferença entre esses artistas. Um aficionado me grita que Picasso era de Málaga (esquecendo de dizer que ele passou sua juventude em Barcelona). Um terceiro lista as obras do Museu do Prado e do Reina Sofia.

Ok, confesso que não estou me baseando em nenhum conhecimento técnico para fazer essa comparação. Apenas tenho a impressão de que conviver cotidianamente com as obras de artistas como Gaudí e Miró faz com que morar em Barcelona seja uma experiência especial.

Afinal, morar em Barcelona é morar na Espanha?

A resposta a essa pergunta pode variar imensamente dependendo da pessoa com quem estamos falando. Mas acho que vale a pena repetir: oficialmente, sim. Quem mora em Barcelona ou em qualquer outra parte da Catalunha também é considerado um residente espanhol.

A nacionalidade oficial é a mesma. E os documentos oficiais, em geral, são os mesmos (exceto para os serviços públicos específicos de cada comunidade autônoma, como a carteirinha da saúde).

A minha opinião

Pela minha experiência, o que faz a diferença no dia a dia, na verdade, é exatamente isso: a experiência. Quer dizer, a experiência de morar em Barcelona e em outras cidades da Espanha me parece diferente.

Pelo uso intensivo do catalão, pela tensão política visível nas ruas, pelas tradições locais e até pela arte catalã. Não digo que seja melhor ou pior morar em Barcelona ou morar em qualquer outro lugar da Espanha. Só acho que é diferente.

De qualquer forma, acredito que, de maneira subjetiva, todos os tipos de respostas para essa pergunta são válidas e corretas. Só depende das experiências que cada um tenha com a cidade. Quais são as suas?